Especial coronavírus: Entrevista com a professora Jeciana Botelho (DFCH)

Solidão, ansiedade, estranhamento são sentimentos recorrentes nos relatos sobre viver uma pandemia, como a que enfrentamos no momento. Para tratar das questões relacionadas à saúde mental, entrevistamos a professora Jeciana Botelho, do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da UESB. A docente, em conjunto com outras colegas da área, atua no Psicologia em Link. O projeto foi criado a partir de uma iniciativa dos estudantes do curso de Psicologia da UESB, que discute com a comunidade sobre assuntos relacionados à saúde mental e realiza atendimentos virtuais durante a quarentena.

Estamos vivendo algo novo na história: a quarentena em nível mundial. Este autoexílio pegou praticamente todo mundo de surpresa e muitas pessoas não estão preparadas para um período tão grande sem contato com outras pessoas ou mesmo sem a rotina cotidiana. Quais as ferramentas e os conhecimentos que uma pessoa precisa para manter a saúde mental?

Esse momento nos apareceu de forma muito brusca, pegando-nos de surpresa, como você disse, e não apenas nos aspectos funcionais, como organização de rotina, mas também nos seus desdobramentos psicológicos. Para a saúde mental, eles ainda aparecem com um agravante, que é todo o clima de medos relacionados às consequências da COVID-19, sensação de cerceamento da liberdade de ir e vir e outras inseguranças que os atravessam. Tenho observado que, nessa ruptura com o apelo para se construir um cotidiano, estamos sendo interpelados a nos questionar sobre como estamos vivendo nossa vida – não somente agora, mas também como estávamos. Vejo alguns voltando a fazer coisas as quais sentia que não tinha tempo, outros se experimentando, pessoas se sentindo mais paralisadas diante dos questionamentos e algumas tentando manter o ritmo e a rotina passada. Para cada um, esse autoexílio tem aparecido de formas diferentes e acredito que, para mantermos uma boa saúde mental, precisamos primeiramente observar como nós estamos nesse meio; livrando-nos, primeiramente, do peso da obrigação de sermos como éramos antes - porque as condições e as prioridades mudaram - e que essa observação aconteça também olhando para frente, para entender quais são os ritmos que nos cabem melhor, de forma pessoal, como vemos e nos relacionamos com o outro, uma vez que o isolamento físico não precisa romper com as possibilidades de socialização; compreender nossos limites como algo natural da vida e não um “fracasso”; dar mais atenção às coisas que estão ao nosso alcance, mesmo que não pareçam tão grandes, como encontrar uma resposta para o que será depois da pandemia, olhando o presente com mais calma, perante um futuro que, condicionalmente na vida, nunca sabemos como será.

Até aqui falei de questões emocionais, intelectuais e sociais, mas também é importante lembrar que um estado de saúde é uma construção diária e não, um fim pronto que se alcança. Acho que esse é um bom momento para olharmos para nós mesmos com mais paciência e, ao compreender os próprios processos, se propor novos hábitos que se aproximem de nossos desejos e necessidades. É muito importante ter um olhar especial para o cuidado com o corpo, pois o físico não se dissocia do mental, com alguma atividade física, dentro das possibilidades de cada um. Entendemos também que cuidar da própria saúde é também um cuidar da saúde do outro, mas não em determinações de como esse outro deve ser, sistemas de hipervigilância e medo – que só aumentam o estresse - porém, buscar construir relações mais significativas, atentas e solidárias com as pessoas em nosso redor. Não nos deixar sermos tomados pelo desespero. Esse momento nos convida a inúmeras reflexões, não somente no âmbito da saúde, mas também social, político, ético e moral e acredito que pode ser muito rico, inclusive para uma transformação das nossas percepções sobre nós mesmos e o mundo.

Você faz parte do projeto Psicologia em Link, que tem feito atendimento psicológico à comunidade durante a pandemia. Como o projeto funciona? Existem características e/ou sentimentos comuns entre as pessoas atendidas? Qual o maior desafio encontrado até o momento?

O Psicologia em Link é um projeto que surgiu por iniciativa de um grupo de alunos do curso de psicologia, voluntários, que tem como objetivo principal criar uma rede de apoio à comunidade universitária, em todos os seus âmbitos, nesse período. Sob supervisão, os alunos estão realizando uma série de ações de divulgação de materiais reflexivos sobre saúde mental e humanidades nesse período, acolhimento a pessoas que sentem necessidade de conversar, sugestão de conteúdos culturais, entrevistas, divulgação de atividades, dentre outros. Essa mobilização está acontecendo de forma virtual, através do Instagram do projeto. Além dele, damos continuidade a outra ação, extensionista, com suporte psicológico a profissionais da segurança pública, com atendimentos online realizados pelas psicólogas e docentes da área de Psicologia Ana Lúcia Castilhano e Odilza Lines.

Além da preocupação com a quarentena, o trabalhador pode ter sua saúde mental comprometida por conta de agentes externos, como o comportamento negacionista do presidente da República, além do desesperador avanço do desmonte do SUS e dos serviços públicos. Até onde pode ir a indignação sem afetar a mente?

Como não sermos mentalmente afetados por tudo o que está acontecendo? Estamos sendo chamados a confrontar constantemente nossas emoções, cognições e valores; é impossível não ser afetado pela realidade que se apresenta. Eu diria ainda que os sofrimentos também podem ser parte de uma construção de sentido pessoal, não apenas os afetos ditos motivadores. O sofrimento mobiliza. No Brasil, particularmente, enfrentamos uma série de outras crises junto à pandemia, que ainda por cima, agravam as dificuldades de enfrentamento da COVID-19 e de estruturas básicas de vida digna. Nos percebendo afetados, o que podemos fazer ante a essas realidades em nossos contextos, seja para ampliá-las ou modificá-las? Nesse contexto, não se deixar tomar apenas pelos grandes discursos ou questões, mas tentar manter um olhar aberto à pluralidade de acontecimentos e à possibilidade de ação pode ser um ponto chave para não nos deixarmos sermos completamente afetados por uma coisa só. A realidade é sempre mais plural e mais complexa do que parece à primeira vista, um olhar mais cuidadoso e disposto às micropolíticas, como às ações, às coletividades mais próximas pode ser uma chave para manter a nossa disposição para enxergar as outras realidades, que acontecem junto aos desesperadores acontecimentos atuais.

Podem ocorrer quadros de adoecimento psicológico ou agravamento dos pré-existentes, por conta de tantas notícias relacionadas à COVID-19?

O excesso de informações em um tempo e espaço tão pressionados sempre podem ser adoecedores, uma vez que, junto a elas, há o clima de perigo iminente que se mantém diariamente e torna as relações altamente vigilantes (e ansiogênicas) de antemão. Por outro lado, faz-se uma oportunidade para refletirmos sobre como nos posicionamos diante desses excessos, oportunidade esta que também pode servir para buscar uma qualidade e ritmo de exposição que caibam às possibilidades, desejos e necessidades de cada um, que nos permita estar conectados com a realidade sem nos apagarmos no processo. O sofrimento é inevitável, mas quando algumas emoções, como o medo, o senso de proteção, são mobilizadores em excesso, nos desconectam da realidade sensível, coletiva e podem ser adoecedores.

Professoras e professores tiveram de uma hora para outra o impedimento do contato social – tão presente e importante em suas carreiras, o que levou a uma abrupta pausa nas trocas de experiências diárias com os discentes. Essa situação pode levar a um estado de desamparo e rebaixamento de humor. Quais passos devem ser tomados para que isso não se transforme em depressão?

Acredito que, assim como acontece nas relações em geral, entre professores e discentes, podemos encontrar novos meios de nos relacionar conosco e com os próximos e se reinventar na sociabilidade – a partir das questões presentes, e não passadas. É possível repensar a construção de um espaço de sociabilidade na universidade para o momento, que responda às necessidades reais, como também em formas de estruturações futuras para quando retornarmos – sobre como retornaremos. Não há uma receita para não se deprimir, mas há tempo para se questionar como se configuravam as relações anteriores pelo viés da saúde mental, nos debruçar mais a olhar uns aos outros e como podemos nos relacionar mantendo essas prioridades. Uma coisa é certa: os padrões, os ritmos e as exigências de antes não nos servem mais.

Os docentes têm tensões bem particulares nesse período. Existe uma grande pressão para retorno das aulas, na modalidade EAD, ignorando o debate sobre os limites e possibilidades desse formato de aula. Sendo um imenso desrespeito aos próprios profissionais que nela atuam, pode provocar angústias, assim como a incerteza quanto ao futuro na carreira. Como a pessoa deve assimilar e organizar tantas informações, sem se prejudicar mentalmente?

Eu lhe devolvo com duas perguntas: quais são as nossas prioridades educacionais e relacionais nesse momento? A quem ou o quê pretendemos servir com os instrumentos propostos? Talvez, possamos começar por não ignorar, mas aflorar o debate sobre os limites e possibilidades dos formatos propostos.

O Poder Executivo Federal e também o Legislativo, já anunciaram diversas vezes a intenção de cortes nos salários dos servidores públicos, outrora chamados de “parasitas”. Tantos ataques podem levar muitos docentes a repensarem suas carreiras, ou mesmo mudar de ramo. A saúde mental pode ficar comprometida ainda mais com a incerteza do futuro. O que deve fazer quem atua em sala de aula para lidar com essas questões?

Sendo bem sincera, como professora, estou me fazendo essa pergunta. Falando por mim, de início, posso dedicar mais atenção a como reagir e ser sensível às possibilidades mais palpáveis que me aparecem, sejam de segurança ou incerteza.

As atividades docentes em casa, como orientação, leitura, preparação de aulas, escrita acadêmica, planejamento de pesquisa, entre outras, podem ser elementos protetores da saúde mental ou podem ser prejudiciais se feitas tentando produzir uma normalidade não mais existente?

Como psicóloga, entendo que saúde e adoecimento não podem ser caraterizados por variáveis fixas e genéricas, há de se olhar para as experiências e condições de quem vive – a partir de quem vive. Não há como determinar de antemão se a relação com atividades docentes em casa pode ser prejudicial ou não à saúde mental, pois essa análise depende do contexto onde essas questões se inserem e atravessam as experiências sociais, pessoais e o modo como as atividades o são organizadas tanto em âmbito pessoal quanto institucional. Podemos, porém, questionar os modos como propomos atividades em casa, uma vez que agora, o ambiente casual, familiar, de repente tornou-se um ambiente de trabalho – pensar em modos de permitam a democratização do acesso, a escuta atenta às novas condições, às pressões estabelecidas, à pertinência de algumas atividades e às possibilidades dos docentes em seus lares. Mais uma vez, não ignorar, mas aflorar os debates sobre os modos de estabelecimento do “home office”.

Para não se perceber perseguindo a “normalidade” passada, que ao meu ver, também tinha seus aspectos adoecedores, podemos começar reconhecendo o caráter intempestivo do momento, nossas limitações e inseguranças diante dessas rupturas e manter um canal aberto de diálogo entre os diferentes atores no processo educacional para entender as questões emergentes de cada contexto e construir novos modos relacionais. Não dá para determinar os desdobramentos das atividades em casa sem tempo para a construção de um diálogo aberto, mobilizador e de novas políticas educacionais. Apesar de “termos muito tempo”, eu diria que é justamente pela rapidez impositiva que caracteriza a emergência desses contextos, precisamos de um pouco de tempo.