Entrevista com Núbia Regina: Mulheres negras e pandemia

Pensando no marco da abolição da escravidão, o racismo estrutural e o atual contexto da pandemia, a Adusb entrevistou a professora Nubia Regina Moreira sobre as mulheres negras e pandemia. A docente faz parte do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas e Letras da UESB (DFCH).

O dia 13 de maio marca a abolição da escravatura. Numa sociedade em que o racismo é estrutural e se manifesta de variadas formas, o que essa data representa, em especial neste momento de pandemia da COVID-19 em que os dados mostram que a parcela da população mais afetada pela pandemia é justamente a negra e pobre das periferias?

Quero pontuar que pensar a vida da população negra no Brasil a partir do fim da escravidão, deve ser feita a partir de uma leitura que considere o processo de constituição lógica capitalista que ao valorizar o trabalho assalariado, privilegia o elemento branco, determinando assim, de forma preconceituosa e precária o lugar do negro no mercado de trabalho. O 13 de maio deixou de ser uma data comemorativa por entendermos que a abolição da escravatura não representou a emancipação política da população negra. Por isso, a importância do 20 de novembro como referência da  resistência negra ao sistema escravocrata e em substituição à falácia do 13 de maio.  Quando digo falácia não nego a importância do seu marco politico; a falácia aqui se deve à insistência por parte dos antigos senhores de escravos e do baronato do café em recusar a liberdade da população negra. Já na República as ideias de superioridade da raça branca são estímulos para produção de políticas econômico-políticas, sociais e culturais que favorecerão essa parcela da população em detrimento da população negra. No processo de formação da república e após a ditadura  militar, a consolidação da frágil democracia brasileira, a população negra teve que lutar em busca de direitos e por melhores condições de vida denunciando o preconceito e a marginalização a que foram submetidos. Dessa forma, precisamos lembrar a agência potente dos movimentos sociais e, particularmente, dos movimentos negros. São eles que denunciam o racismo estrutural, propagam os saberes e conhecimento da população negra e ativam redes de sobrevivências em direção a salvaguardar a vidas negras. Como as escolhas políticas realizadas ao longo da história brasileira se desobrigaram da proteção e inclusão das negras e negros desse país. Há, em certa medida, uma aceitabilidade das violências e desassistência que reforçam a precariedade da vida dos 53% da população brasileira que é negra.

Diversos Estados divulgaram pesquisas que indicam aumento da violência doméstica durante a pandemia. Quais as razões para isso? Tendo em vista que as mulheres negras são as maiores vítimas de feminicídio no Brasil, o que representa esse novo cenário?

Num contexto que estamos todos obrigados a um isolamento social, temos visto o escancarar da desigualdade social no Brasil. E aqui eu gostaria de frisar que as desigualdades sociais que se perpetuam e se arrastam ao longo da história da sociedade brasileira são fruto das opções políticas feitas ao longo da história da sociedade brasileira.

Nesse momento a acelerada repulsa aos mais pobres, aos negros e às mulheres, produzidos em discursos e mensagens em redes sociais, por representantes governamentais e nas interações sociais constrói um esgarçamento na convivência. As relações sociais e consequentemente a desigualdade, se estruturam pela distância, expressa pelos marcadores: classe, raça e gênero e geração, entre outras. Comumente podemos fazer uma leitura e análise das desigualdades por meio da renda/classe, e aqui cabe uma pontuação. Prefiro utilizar a classe que a renda, porque a classe consegue incluir não somente os fatores materiais, mas também os ditos simbólicos, isto é, está em uma condição de classe, em uma dada formação social, expressa o modo de funcionamento de acesso aos bens produzidos socialmente e como os segmentos sociais são reconhecidos interdependentes ao outros.

Já é sabido que uma leitura universal para tratar a condição feminina não consegue incluir as particularidades das experiências de vida de todas as mulheres, no entanto, em contexto de pandemia o retorno a uma imposição destinada às mulheres parecem tendenciosamente colocá-las numa igualdade desvantajosa. Poderíamos expressar por meio de um raciocínio que nos leva a afirmar que no contexto da pandemia, as mulheres estão mais vulneráveis e expostas com mais intensidade às obrigações domésticas, familiares e sexuais. Nesse sentido as mulheres  negras compõem o contingente populacional de maior vulnerabilidade. Então é na vida dessas mulheres que a violência é mais presente, seja pelo aparato do braço armado do estado, seja a violência cometida sobre seus corpos, afetando a sua integridade física, emocional e material.

O trabalho informal é realidade para quase 50% das mulheres  negras do Brasil. Devido a pandemia, muitas mulheres estão com sua renda comprometida ou estão sendo obrigadas a continuarem suas atividades, colocando suas vidas e de suas famílias em risco. O benefício emergencial de R$ 600, em geral, não é suficiente para suprir as necessidades. Qual a avaliação que você faz deste cenário?

É claro que nós já sabemos que na escala das mulheres, as mulheres negras estão, e são, as mais vulneráveis não só no contexto da pandemia. A pandemia escancarou a brutal desigualdade da sociedade brasileira para os 56,10% da população negra desse país. Lembrando que mulheres negras representam 25,3% da população brasileira. São as estas mulheres, acompanhadas dos seus filhos, que integram a faixa mais pauperizada da população, também são elas que em proporção às mulheres brancas chefiam suas famílias compostas por elas e seus filhos.

As mulheres continuam a desenvolver trabalhos domésticos, em sua grande maioria, desenvolvidos pelas negras. Segundo a carta divulgada pela Articulação das Mulheres Negras Brasileiras, mais de 90% das trabalhadoras domésticas do Brasil são de negras e elas não estão sendo liberadas. Ou a liberação é sem remuneração, o que as levam a recorrer ao auxílio emergencial. Ainda segundo a carta da AMNB, a adesão ao isolamento não pode ser realizada para os postos de trabalho informais de maior vulnerabilidade, para as caixas de supermercados, para a população em condição de rua etc. Nesse momento, seria fundamental o fortalecimento do SUS para garantir o acesso de forma eficiente aos mais vulneráveis, ampliação das redes de proteção e cuidado aos mais pobres, garantir a segurança alimentar a crianças e jovens da rede pública de educação por meio de oferta da merenda escolar, abertura de canais de diálogo entre os entes federados e associações da periferia etc.