Especial COVID-19: Entrevista com Patrícia Anjos

Atualizado em 13 de outubro de 2020 às 14:24.

É alarmante o índice de docentes com adoecimento mental. A precarização do trabalho e o produtivismo afetam de maneira incisiva esta categoria. A pandemia intensificou tal cenário, especialmente com a realidade do trabalho e ensino remotos. Convidamos Patrícia Anjos, professora do Departamento de Saúde II da UESB e doutora em Ciências da Saúde, para debater sobre saúde mental docente no contexto da pandemia. Patrícia faz parte do projeto Terapia Comunitária e Promoção da Saúde Mental de Docentes da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - Jequié. Professoras e professores de qualquer campus da UESB com interesse em participar das rodas de Terapia Comunitária Integrativa podem entrar em contato pelo Instagram @gepsm2. As atividades acontecem de terça-feira a sexta-feira às 14h30, na plataforma Google Meet.

A pandemia tem modificado o fazer docente especialmente no que se refere ao trabalho e ensino remotos. Você acredita que essa realidade interfere de alguma forma na saúde mental de professoras e professores?

Estudos sobre implicações na saúde mental em decorrência da pandemia do novo coronavírus ainda são escassos, por se tratar de fenômeno recente, mas apontam para repercussões negativas importantes, já que pesquisas anteriores sobre outros surtos infecciosos revelaram desdobramentos desadaptativos na população geral, o que não é diferente no que se refere aos professores e professoras. Os docentes, geralmente, compartilham medo de adoecer, de perder pessoas queridas, de ter perdas salarias, de contrair dívidas, de ser excluída(o) em virtude do distanciamento e/ou isolamento social, da doença e do risco de transmitir o vírus, além da sensação de esgotamento relacionado ao aumento do tempo para preparo de aulas e de dedicação aos discentes, sensação de não conseguir dar conta de todas as demandas domésticas, familiares e profissionais. Tudo isso associado ao sentimento de tristeza, angústia, insegurança, solidão, alterações do sono, conflitos familiares e à sensação de estar sendo forçada(o) a se mover da atividade presencial clássica, no espaço da sala de aula, para ações de ensino remoto ou da educação à distância, aumentam o risco do docente vivenciar o stress e suas consequências, tais como adoecimento físico e/ou mental, a exemplo dos transtornos de ansiedade e do humor.

No que consiste a terapia comunitária integrativa? Quais as principais diferenças entre outras formas de terapia?

A Terapia Comunitária Integrativa (TCI) consiste em uma tecnologia leve de cuidado, sistematizada em seis etapas (acolhimento, escolha do tema, contextualização, problematização, encerramento e encaminhamentos). A TCI mobiliza a competência das pessoas por meio da construção de vínculos solidários, corresponsabilização pela busca de soluções e superações de desafios cotidianos, em um ambiente acolhedor e caloroso; e, pode ser realizada com qualquer número de pessoas e de qualquer nível socioeconômico. Para o psiquiatra e professor Dr. Adalberto Barreto, que construiu essa tecnologia cuidativa, “a conversa é o remédio”, de modo que indica a utilização de provérbios para suscitar a reflexão e mobilizar o diálogo no grupo, a saber: “quando a boca cala, os órgãos falam” e “quando a boca fala, os órgãos saram”. Dr Adalberto Barreto sustentou a construção dessa tecnologia em cinco pilares teóricos: o Pensamento Sistêmico; a Teoria da Comunicação  (Watzlawick); a Pedagogia de Paulo Freire; a Antropologia Cultural; e, a Resiliência.  As principais diferenças entre a TCI e outras formas de terapia evidenciam-se no reconhecimento do participante como protagonista do seu processo de cuidado e do grupo como terapeuta; reconhecimento do potencial da fala e da escuta; na valorização das experiências de vida; resgate da identidade; restauração da autoestima; ampliação da percepção dos problemas e possibilidades de resolução a partir das competências pessoais. Nesse contexto, o terapeuta é um motivador, incentiva a utilização de provérbios populares, canções e partilha de experiências de vida e sabedorias, de forma horizontal e circular. Assim, cada pessoa torna-se terapeuta de si mesmo, a partir da escuta das histórias de vida que ali são relatadas.

Como funciona o projeto Terapia Comunitária e Promoção da Saúde Mental de Docentes da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - Jequié? Há possibilidade de atendimento também em Itapetinga e Vitória da Conquista?

As rodas de TCI são realizadas por integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental (GEPSM): loucos por cidadania, que são enfermeiras e terapeutas comunitárias. A proposta foi pensada em virtude de uma pesquisa-ação que estamos desenvolvendo no campus de Jequié, sob a coordenação da Profa. Dra. Edite Lago da Silva Sena. A pesquisa intitulada “Terapia comunitária e promoção da saúde mental de docentes da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – Jequié” foi realizada em dois momentos. No primeiro momento, os docentes se disponibilizaram voluntariamente a participar de, no mínimo, seis e, no máximo, oito rodas de TCI. No segundo momento, agendamos entrevistas fenomenológicas a partir das seguintes questões disparadoras: fale sobre a sua experiência nas rodas de TCI; e, discorra sobre o potencial da TCI para a promoção da saúde mental de docentes universitários.  Nesse momento, estamos realizando rodas de TCI às quintas feiras, às 14:30h, pela Plataforma Google Meet, e todos os docentes da UESB podem participar, independente do campus ao qual esteja vinculado. Os docentes que desejarem participar das rodas de TCI, devem enviar mensagem pelo direct do Instagram @gepsm2 ou, após o retorno das atividades presenciais, pelos telefones (73) 3528 9623, do Departamento de Saúde II, ou (73) 3528 9715, do Cento Interdisciplinar de Estudos do Envelhecimento – CIEPE.

Neste ponto da pandemia, em que mais de 100 mil mortes já ocorreram em nosso país, muitos de nós já perderam alguém ou algum conhecido por covid-19. Como você avalia que o Brasil tem lidado com o luto social? E a UESB?

A crise mundial da pandemia está fortalecendo a concepção hegemônica do modelo econômico sustentado na flexibilização da produção e na precarização das relações de trabalho. Contudo, o que percebemos é a diminuição do crescimento econômico e o aumento do desemprego, que gera ainda mais miséria e exclusão social. Esse cenário, evidencia o que os cientistas apontam desde o início da epidemia, o fato de que essa crise não é apenas sanitária: ela é um “fato social total”, com potencial para produzir efeitos em toda as esferas da vida social, e, portanto, deve haver uma implicação de todas as pessoas, comunidades, instituições e agentes públicos e privados, no que tange à proteção individual e coletivo. Ou seja, deve haver um pacto coletivo de solidariedade, bem comum e defesa da vida (o que ainda não estamos vendo). Uma pesquisa realizada no ano de 2016, pelo profº da UFMG, Dr. Marcelo Ricardo Pereira, com professores da rede municipal de Belo Horizonte, já evidenciava que o trabalho no domicílio é marcado pela improvisação e precarização das condições de trabalho, o que tem relação com o crescente fenômeno do esgotamento e hipermedicalização. Os diálogos com os docentes que participam das rodas de TCI ratificam esses achados e fazem ver a necessidade da UESB atentar para os riscos aos quais os docentes estão expostos, sobretudo no que tange ao capacitismo, ao produtivismo e geracionismo. A instituição precisa enfrentar a lógica do capital, principalmente nesse momento de pandemia, construindo espaços democráticos de fala e participação dos docentes no processo de tomada de decisões referentes ao desenho e a implementação do trabalho remoto, bem como de um programa de capacitação permanente para utilização de plataformas digitais, e garantindo o acesso à tecnologia de informação e comunicação. Além disso, precisa estimular pesquisas e projetos de extensão que visem apoiar os docentes na (re)construção de recursos sociais, culturais, literários, artísticos, entre outros que contribuem para a elevação da auto estima e melhora da auto imagem. Para tanto, faz-se necessário ainda a garantia de atendimento psicoterápico individual, considerando que o Conselho Federal de Psicologia autorizou o trabalho remoto dos psicólogos. Além disso, a universidade pode e deve apoiar a realização de trabalhos de grupo, tais como rodas de conversa e de TCI.


A partir das experiências do seu projeto e estudos da área, é possível recomendar algum tipo de cuidado ou estratégia aos docentes que sentem sua saúde mental abalada neste momento de pandemia?

Considerando as estatísticas de que os docentes ocupam o segundo lugar no que tange ao adoecimento por doenças ocupacionais, algumas estratégias e ferramentas de cuidado podem ser utilizadas no sentido de olhar para além dos sintomas, mas compreender o contexto. Seja qual for a estratégia, faz-se necessário que seja pautada na escuta qualificada e terapêutica; na integralidade da pessoa humana e do cuidado, que supõe o  rompimento da dualidade mente-corpo e saúde-doença; no respeito à cultura, vista como um valor, como um recurso que permite somar, multiplicar potenciais de crescimento, de resolução de problemas sociais e de construção da resiliência. De acordo com a cultura, podemos sugerir a utilização de uma ou mais das seguintes atividades: meditação; leituras, inclusive em grupos; exercícios respiratórios; exercícios espirituais; musicoterapia; dançar; engajamento em projetos sociais e lutas de classe, que favoreçam a (re)construção de vínculos e aumentem a sensação de pertencimento e esperança. E, claro, os docentes podem procurar auxílio de profissionais da área da saúde mental, tais como terapeutas holísticos ou comunitários, psicólogos e psiquiatras. Nessa perspectiva, estamos propondo a participação nas rodas de TCI como uma alternativa e convidando os colegas a unirem-se àa nós. E, para finalizar, gostaria de trazer um pensamento de Hemann Hesse, que diz: “Nada lhe posso dar que já não exista em você mesmo. Não posso abrir-lhe outro mundo de imagens, além daquele que há em sua própria alma. Nada lhe posso dar a não ser a oportunidade, o impulso, a chave. Eu ajudarei a tornar visível, e isso é tudo”. Agradeço a oportunidade de fala e espero que essa entrevista possa despertar em muitos o desejo de cuidar de si e do outro. AbraSUS.