Dia de Luta das Pessoas com Deficiência: Entrevista com Ana Isabel Nascimento

O Brasil possui cerca de 45 milhões de pessoas com deficiência, que enfrentam diariamente as dificuldades de viverem em uma sociedade notadamente capacitista. Há dificuldades no acesso ao emprego, serviços públicos, cultura, lazer, transporte público, dentre outras questões fundamentais para a vida. Neste Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, a Adusb entrevistou profissionais da educação, pesquisadores e militantes para contribuírem sobre o tema. A primeira entrevistada é Ana Isabel Nascimento, professora do Departamento de Ciências Biológicas da UESB e doutora em Patologia Experimental pela FIOCRUZ/UFBA. É integrante do grupo de pesquisa Neurogenesis, onde coordena o projeto de pesquisa "Estudo epidemiológico da população infanto-juvenil afetada por transtornos no neurodesenvolvimento em Jequié – Bahia”.

1. De quais formas e através de quais elementos estruturais e socioeconômicos, o capacitismo se expressa em nossa sociedade? Como podemos lutar pela inclusão e garantia de direitos às pessoas com deficiências?

O capacitismo se expressa em nossa sociedade de modo estrutural quando a arquitetura dos espaços públicos impede o pleno exercício da cidadania da pessoa com deficiência, comprometendo seu direito de ir e vir livremente, fazendo com que sejam vistas pela sociedade como dependentes de ajuda para acessar esses ambientes. Com isso evidenciam as fragilidades unidirecionalmente, apenas por parte da pessoa com deficiência, rotulando-a como incapaz de, por si só, se deslocar, usufruir de seu direito à acessibilidade, à liberdade de movimento e à circulação com segurança. 

Da mesma forma o capacitismo socioeconômico se revela de forma cruel à pessoa com deficiência, visto que as empresas precisam ser obrigadas por lei a compor vagas exclusivas. É claro que existe um resgate social e econômico nas políticas inclusivas, indubitavelmente importante e necessário. Mas quando se obriga, de forma legal, penso que o compromisso com a eficiência, competência, capacidade do indivíduo em mostrar-se adequado àquela oportunidade de trabalho se dissipa por uma razão premente, que é atender à legalidade. Muitos indivíduos vêm sendo mantidos em empresas exercendo funções avessas à sua capacidade intelectual apenas para preencher esta vaga, numa condição de capacitismo que pode resultar em baixa autoestima, impedindo-os de serem produtivos. Ademais, é preciso romper com o paradigma da “gratidão” que as pessoas com deficiência devem ter pela oportunidade legal e obrigatória que a empresa lhe concedeu.

Nesta perspectiva, é importante lembrar que as barreiras atitudinais também se constituem em obstáculos, talvez os primeiros, a serem transpostos. Uma vez que fazem parte do cotidiano e resultam de crenças, valores, conceitos historicamente perpetuados pelos mais diferentes grupos sociais. A diversidade é natural à nossa existência, essa é a nossa essência enquanto “indivíduos”. Então precisamos agir de forma a atender e respeitar essa diversidade. Políticas inclusivas são necessárias, mas, para além delas, precisamos de políticas públicas que atendam às individualidades coletivas que oportunizem à pessoa com deficiência ocupar seu espaço com dignidade e valor. Romper com as barreiras atitudinais implícitas nas políticas inclusivas vigentes. Sobretudo romper com o capacitismo que rotula a pessoa com deficiência como “coitada” merecedora de cuidados e oportunidades.

2. No âmbito educacional verifica-se o quanto as pessoas com deficiência são excluídas do processo de formação. Em tempos de ensino remoto esta exclusão é ainda mais aprofundada. Qual a sua avaliação sobre este momento e o impacto sobre as pessoas com deficiência?

A pandemia trouxe consigo uma necessidade urgente às pessoas de repensar seu modo de vida e suas prioridades. No âmbito educacional, nos é exigido uma nova forma de ensinar e aprender, novas ferramentas educacionais a serem utilizadas, novas estratégias de ensino. Ensinar remotamente exige um novo olhar do professor, domínio de tecnologias, uma nova forma de organização metodológica. Por outro lado, exige do aluno uma nova postura frente ao seu papel no processo ensino-aprendizagem. No atual contexto, mais do que antes, o aluno é o protagonista, precisa ter autonomia na organização de seu tempo de estudo, precisa também dispor de equipamentos eletrônicos.

Espaço físico adaptado a este novo momento de ensinar e de aprender é uma exigência muito difícil a ser alcançada para professores e alunos. Dividir a rotina domiciliar com uma nova rotina de estudos exige um esforço hercúleo para ambos. Em tudo isso estamos considerando professor e aluno típicos, física e neurologicamente falando.

O que dizer do aluno atípico neste contexto? Se durante o ensino presencial este grupo de alunos já sofria com o impacto das barreiras atitudinais, arquitetônicas e pedagógicas, com a introdução do ensino remoto que exige uma participação intensa do aluno e de sua família o processo de inclusão escolar deixa à margem este grupo.

Nenhuma proposta de política educacional inclusiva foi aventada durante esses seis meses de pandemia. Vivemos em um país onde a maior parte da população não tem acesso à internet, equipamentos digitais que permitam acesso a aulas on-line, além de uma rede de acesso. Aliado a tudo isso também não dispomos de recursos pedagogicamente integrativos disponíveis eletronicamente e de forma gratuita para oportunizar a aprendizagem de pessoas atípicas. Todo esforço de pareamento fica por conta da família. A exclusão é gritante, mas vivida apenas pela família das pessoas atípicas que já empunham essa bandeira muito antes da pandemia.

Integrar educacionalmente os grupos minoritários não é tarefa fácil e exige das instituições de ensino um compromisso político pedagógico que englobe “todos” os alunos. Vale salientar a importante função do professor neste processo, enquanto profissional capaz de ajustar o currículo de modo que a aprendizagem possa acontecer universalmente entre seus alunos, dentro das especificidades inerentes a cada grupo. Assim, percebo que a pandemia nos revela quão excluídos muitos grupos são. Seja em âmbito educacional, social, econômico. Parece-me que ela vem realçar ainda mais a invisibilidade que já reinava naturalmente.

3. Quais são os principais desafios para garantir a acessibilidade a todos/as em um contexto de desvalorização educacional, considerando os cortes de investimentos em políticas públicas educacionais em todos os âmbitos da federação?

São muitos os desafios intrínsecos à acessibilidade no contexto da educação. Sempre foram muitos. No atual contexto se faz mais acentuado. O compromisso com a educação, travestido em políticas públicas, está muito aquém da nossa realidade.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua realizada no ano de 2019 (PNAD Contínua 2019), no Brasil existem 11 milhões de analfabetos com idade entre 15 anos de idade ou mais; com idade igual ou superior a 25 apenas 8% com ensino fundamental completo; 27,4% com o ensino médio completo e 17,4% com ensino superior completo. Os números falam por si. O direito à educação no Brasil é negligenciado para a maior parte da população, esses dados são referentes a pessoas sem deficiências e típicas. Falar de acessibilidade à educação para esse grupo sem olhar para o panorama que se apresenta não faz sentido.

Segundo a UNESCO 27% da população brasileira possui algum tipo de deficiência. Não há dados para o monitoramento de alunos com deficiência ou algum tipo de transtorno, o IBGE não apresenta informações que permitam identificar como está o processo de inclusão de crianças em idade escolar no Brasil. Essas informações são negligenciadas, não interessam.

Enquanto cidadãos, temos muito a fazer. As eleições municipais se aproximam, é hora de analisar cuidadosamente os perfis que se apresentam. Averiguar suas ações e não suas promessas. A ferramenta de mudança que temos é essa, o voto. Não elaboramos leis ou projetos, mas escolhemos quem os faz. É impossível falar de acessibilidade sem associar com os políticos que elegemos. Fazer a nossa parte enquanto profissionais da Educação contribui enormemente para mudar as realidades próximas a nós, mas as mudanças que alcançam um perímetro maior precisam acontecer em decorrência de nossos posicionamentos políticos e das nossas escolhas.