Após 13 anos, tropas da Minustah saem do Haiti, deixando pra trás miséria e violações aos direitos humanos

Após os 13 anos de Minustah (sigla em francês para Missão de Estabilização da ONU no Haiti), os chamados “capacetes azuis”, nome dado aos soldados das forças da ONU (Organização das Nações Unidas), começaram a deixar o país caribenho no último 1º de setembro.

O cronograma de saída das tropas do país está previsto para ser concluído até 15 de outubro, quando então haverá um período de “transição”, inicialmente de seis meses, com a “Minujusth”, missão composta por civis e policiais para suporte à Justiça no Haiti.

Criada supostamente com a justificativa de combater a violência e a instabilidade política no país mais pobre das Américas, a Missão que teve início em 2004, sob o comando militar do Brasil, ainda no governo Lula, longe de cumprir com objetivos “humanitários”, manteve as condições de miséria e violação de direitos humanos no país.

Sem qualquer esforço real pela reconstrução do país, o texto da ONU que detalhava a renovação da Missão no país colocava como principal objetivo das tropas a segurança na realização das eleições. “A resolução chama a Minustah a continuar seu apoio ao processo político que tem lugar no país e seguir prestando sua assistência ao governo haitiano e ao Conselho Eleitoral Provisório nos preparativos dos comícios”, diz o texto.

O pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e do Grupo de Estudos em Conflitos Internacionais (GECI) da PUC-SP, João Fernando Finazzi, traz à tona em artigo que “em telegrama diplomático, Janet A. Sanderson [embaixadora dos EUA] reconheceu que o término da missão seria uma ameaça por, dentre outras coisas, deixar o governo haitiano suscetível à ‘reemergência’ de forças políticas populistas e contrárias à economia de mercado – revertendo os ganhos dos últimos 2 anos”.

Treze anos depois, nem mesmo a ONU ou o governo brasileiro ousam afirmar que as condições sociais do país melhoram com a ajuda da Missão. A miséria, o desemprego, a fome e a total falta de infraestrutura permanecem, tendo sido agravadas após o terremoto de 2010, que deixou milhares de mortos, e a epidemia de cólera, causada por tropas da missão, que matou, até dados divulgados em 2013, 8.300 pessoas. Foram cerca de mil mortes por ano até este registro e a estimativa é de que tenham morrido cerca de 10 mil.

A miséria também ganhou dimensão alarmante. Segundo relatório publicado pelo Programa Mundial de Alimentos, publicado em 2014, um terço da população sofria insegurança alimentar. Em cálculo da própria Minustah, divulgado em 2013, ao menos 81,6 mil pessoas no país sofriam com grave desnutrição. Como símbolo da pobreza extrema, ficou conhecida a bolacha de terra, feita apenas com manteiga, açúcar, água e argila.

A Missão foi marcada também por graves denúncias como os casos de abuso sexual por parte de soldados e até mesmo o suicídio de militares em operação no país.

Entre 2008 e 2013 foram registradas 480 denúncias de abusos sexuais em duas missões específicas, do Haiti e da Libéria, sendo que um terço desse número envolve menores de idade. Um relatório de 2016 apontava 99 denúncias de abusos em missões de paz em 2015, sendo 69 cometidos por soldados, 30 por outros tipos de agentes, nove ligados a soldados da Minustah.

Dois militares cometeram suicídio no país. O primeiro, em 2006. O ex-comandante da missão general Urano Bacellar foi encontrado morto com um disparo na cabeça em seu quarto, no hotel onde vivia em Porto Príncipe. Em 2013, o soldado Geraldo Barbosa Luiz também se matou, disparando contra si mesmo tiros de fuzil. Este suicídio ocorreu dentro do quartel.

Finazzi ressalta que, ao avaliar a Missão, de modo geral, não se pode afirmar resultado positivo para a população. “Basta olhar a manutenção da miséria e da desigualdade extremas que assolam o país”, pontuou.

O pesquisador também destacou o papel de repressão cumprido pela Minustah. “Grupos partidários do presidente deposto, Jean-Bertrand Aristide, foram reprimidos, presos ou mortos desde o início da missão e embora houvesse grupos que aterrorizavam, matavam ou sequestravam, também existiam muitos militantes de movimentos, como o Lavalas, que foi um movimento de massas do Haiti desde a democratização dos anos 90, que foram perseguidos pela polícia”, disse.

O coordenador da USIH (União Social dos Imigrantes Haitianos) – associação que nasceu com o apoio da CSP-Conlutas com o objetivo de fortalecer a luta pelos direitos dos haitianos no Brasil – , Fedo Bacourt destacou que a ONU, que se colocava em território haitiano para defender direitos, desrespeitou os mais fundamentais. “Desde 2004, o Haiti seguiu sendo violado, foram anos de humilhação, estupros e violação dos direitos humanos. Os trabalhadores haitianos e os movimentos perderam o direito à greve, à reclamação, à manifestação”, relatou.

O membro do setorial Internacional da CSP-Conlutas, Wilson Ribeiro, reforça o relato de diversas violações aos direitos humanos que os haitianos sofreram neste período de Missão no país. “Muitas doações foram feitas de todo o mundo, com as campanhas humanitárias pelo Haiti. Porém, pouco chegou ao povo, segundo relato dos próprios haitianos quando estivemos lá. Os esquemas de corrupção retiveram o dinheiro doado e até os alimentos, medicamentos e roupas. Houve, inclusive, enriquecimento de algumas pessoas em cada uma dessas campanhas. Mas, se as tropas da ONU não intervieram para assegurar a distribuição das doações e impedir a corrupção, por outro lado, intervieram em mobilizações sociais e greves dos trabalhadores, com saldo de alguns mortos”, frisou.

Todo este processo pode ter colaborado para maior descrença da população haitiana nas instituições. Finazzi aponta que “o atual presidente eleito conta com apoio de apenas 9,5% do eleitorado, num pleito que contou somente com 20% dos votantes, mas que foi considerado pela comunidade internacional como um ‘sucesso’. Além disso, houve um incrível aumento da polícia haitiana, que triplicou de tamanho – de cerca de 5.000, em 2004, para 15.000 -, modernizou seus equipamentos e se armou – inclusive com muitas armas provenientes do Brasil, que chegou a ultrapassar os EUA na quantidade de envio durante os últimos anos”.

“Na época do governo Lula, e até hoje, a tese dominante na academia para o engajamento brasileiro é que ela faria parte de uma estratégia de busca de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Não acredito nisso, pois o que vem a ser esse assento senão a manifestação do poder das grandes potências? Agora, há que se levar em conta o que os militares estão falando: o Haiti serviu como campo de testes para as ações nas favelas. Ou seja, foram para lá pra aprender a garantir a ‘lei e a ordem’. Mas que ordem é essa que temos hoje?”, questiona o pesquisador.

Para Fedo, a saída da Minustah será benéfica para o povo haitiano, mas ele vê com desconfiança a nova Missão que dizem ser temporária. “A saída da Minustah vai ser um benefício. É o desejo do povo. A ocupação é um desrespeito à soberania dos haitianos. No lugar da Minustah vai começar a Minujusth, liderada pelo Canadá, que falam que será de seis meses, mas vai saber. O Haiti pertence ao povo haitiano”, disse.

A CSP-Conlutas esteve no Haiti antes e depois do terremoto, em 2010. Desde então segue com a ajuda humanitária e o apoio político, exigindo a retirada das tropas e da intervenção da ONU no Haiti, junto a movimentos populares e sindicais haitianos, como a central sindical Bataye Ovrière, que compõe, assim como a nossa Central, a RSISL (Rede Sindical Internacional de Solidariedade e Lutas) e ao movimento criado por imigrantes haitianos no Brasil, a USIH.

“Infelizmente, depois de anos de operação, o país continua mergulhado na miséria, destruído e com muita corrupção. Os haitianos continuam saindo para procurar uma vida melhor em outro país e mandar dinheiro para seus familiares que ficaram no Haiti. E esses bilhões que foram gastos com as tropas se fossem utilizados para construir escolas, hospitais, para melhorar o saneamento básico, teria ajudado muito mais aquele povo. Mas, se a saída das tropas do Haiti não significa uma prosperidade econômica, ao menos significará a liberdade para aquele povo decidir soberanamente seu destino”, conclui Wilson.