Especial COVID-19: Entrevista com Felipe Watarai e Maíra Avelar

A pandemia impôs desafios para os mais diversos setores da sociedade, inclusive para a educação pública. Na UESB, o cenário não foi diferente, especialmente com a adoção do ensino remoto emergencial. Para aprofundar o debate sobre o assunto, entrevistamos os docentes Felipe Watarai (DFCH) e Maíra Avelar (DELL) sobre a pesquisa que resultou no artigo “À distância ou manter distância? Desafios para o ensino remoto emergencial em uma Universidade Estadual Brasileira” (tradução livre). O trabalho foi premiado como melhor artigo da Conferência Internacional NORDSCI.

O que motivou a realização do trabalho?

Nossa motivação inicial partiu da decisão da UESB para retomar as aulas dos cursos presenciais de graduação via Ensino Remoto. Ainda que com pouco tempo para resposta, a Prograd aplicou um questionário para discentes e docentes quanto ao acesso à internet e a equipamentos, que, especialmente para discentes, apesar de a amostra ter sido estatisticamente significativa, teve poucas respostas nos cursos em que os discentes costumam ser mais desassistidos financeiramente, como as Licenciaturas e os demais cursos de Ciências Humanas. A partir dos dados levantados a Universidade havia considerado, naquele momento, ser possível retomar remotamente o semestre obrigatório da Graduação e não havia nenhum plano de inclusão digital discente e nem de capacitação docente.

Consideramos que os debates a partir dos dados levantados não deram a devida ênfase à parcela, não desprezível de discentes, que não poderia ser incluída no Ensino Remoto Emergencial. Conforme demonstramos num vídeo, cuja base de dados foi o próprio questionário da Prograd, cerca de um terço dos discentes não possuía equipamentos e/ou internet adequados para acompanhar aulas remotas. Ressaltamos, inclusive, a negativa da Universidade em divulgar dados, mesmo que advindos do questionário oficial. Felizmente, os vídeos circularam nas redes sociais e atingiram mais de 1200 visualizações.

Posteriormente, a partir de um esforço coletivo junto aos nossos Colegiados e Departamentos, a quem somo profundamente gratos, elaboramos novos questionários, que foram aplicados aos discentes de nossos cursos (Letras e Psicologia), os quais buscaram também levantar aspectos não investigados pelo primeiro questionário. Naquele momento, nossa intenção era aprofundar e qualificar o debate com dados sobre demandas de inclusão digital discente, especialmente em relação ao acesso à internet e a equipamentos.

Por fim, com todos esses dados levantados e diante da negativa de sua divulgação à comunidade acadêmica da UESB, por meio de canais oficiais da instituição, decidimos não “deixar os dados na gaveta” e participar de um tradicional congresso internacional, que tinha uma seção exclusiva para debate sobre os impactos da COVID-19 nos espaços de trabalho, sobretudo os impactos educacionais em cursos de Humanidades.

O artigo traz dados importantes sobre o desenvolvimento da pandemia na Bahia e cita brevemente uma certa pressão do governo do Estado para a retomada das atividades de ensino, o que posteriormente se desdobrou na aprovação do Ensino Remoto Emergencial na UESB. O que vocês pensam sobre essa relação e a ideia construída no imaginário popular de que a universidade só está em funcionamento quando as aulas da graduação estão em curso?

Essa ideia se encontra presente não apenas no imaginário popular (que inclui os serviços públicos de um modo geral), mas também na nossa própria Universidade e no Governo Estadual. Se o Governo, por um lado, condicionou a liberação de verba à retomada das aulas de Graduação, por outro lado, a Universidade, ao apressar o debate sobre o Ensino Remoto e ao naturalizar esse contingenciamento de verba, chancelou e endossou essa ideia. 

Diferentemente do que ocorreu nas outras estaduais e mesmo na Universidade Federal sediada Vitória da Conquista, que decidiram retomar remotamente com um semestre optativo, a UESB optou pela retomada do semestre obrigatório. Isso alimenta a ideia de que atividades de pesquisa, extensão e mesmo pós-graduação são secundárias. O tripé ensino-pesquisa-extensão é ignorado, como já costuma acontecer, na prática, no cômputo da nossa carga horária. Além disso, com a decisão pela retomada remota do semestre obrigatório, ignorou-se o risco de evasão discente, inclusive por atraso no recebimento dos auxílios, uma realidade amplamente relatada pelos discentes.

A pesquisa desenvolvida traz dados relevantes sobre as condições de estudo dos discentes da UESB durante a pandemia e chama atenção para o risco da exclusão digital. O que vocês acreditam ser necessário para superar os problemas apresentados na pesquisa, principalmente no que se refere à exclusão digital?

Inicialmente, a quantidade de bolsas oferecidas pela instituição (1600 para equipamento, e 1000 para serviço de internet) se mostra insuficiente, a partir dos dados levantados pelo questionário aplicado pela Prograd. Nos demais questionários, que abarcam realidades específicas, essa insuficiência se mostra ainda mais grave. Os dados da Prograd, ou seja, os dados considerados como oficiais, apontam que seriam necessárias, pelo menos, 2630 bolsas da primeira modalidade; e 2515, da segunda. Além disso, qualquer pesquisa rápida de mercado pode constatar que os valores de R$800,00 e quatro parcelas de R$50,00, respectivamente, mostram-se muito abaixo da média dos produtos e serviços a serem adquiridos.

Ainda assim, apenas aumentar a quantidade de bolsas e seus valores não resolve por completo essa questão. Por exemplo, constatamos, a partir dos questionários dos alunos de Letras e Psicologia, que uma significativa parcela dos discentes não possui, em suas localidades, nenhum serviço de internet disponível. Também verificamos que uma grande parte dos discentes passou a trabalhar e/ou a cuidar de pessoas em suas residências, a maioria nos períodos de seus cursos ou mesmo em período integral.

Dessa, maneira, seria necessária a implementação de políticas públicas muito mais amplas para que o Ensino Remoto Emergencial fosse, de fato, inclusivo. Nesse ponto, ressaltamos que o artigo não coloca a Universidade como “vilã”, mas aponta que a solução do problema é multifatorial e envolve agentes governamentais e políticas de Estado que vão além dos muros da UESB.

Apesar de o artigo discutir o processo de implantação do Ensino Remoto Emergencial na UESB, com foco nos estudantes, vocês acreditam que também existam impactos da pandemia no trabalho docente?

No nosso ponto de vista, a implementação do Ensino Remoto Emergencial é apenas mais um aspecto que se soma a um processo mais amplo de precarização do trabalho docente nas Universidades Estaduais da Bahia. Apontamos no artigo que, com o contingenciamento de verba que vem ocorrendo, ao longo dos últimos cinco anos, especialmente, os salários docentes encontram-se seriamente defasados, devido à falta de reajuste.

No caso específico do trabalho durante a pandemia, os docentes não podem contar com a infraestrutura da Universidade, pois, mesmo antes, não há internet de qualidade no campus e a maior parte de nós não tem um gabinete ou um ambiente de trabalho adequado. Neste momento de pandemia, ao restringir o trabalho acadêmico ao ambiente doméstico, a Universidade ignora uma série de fatores que vários colegas relatam: a necessidade de cuidar de crianças e idosos, frequentemente sem uma rede de apoio adequada, concomitantemente à rotina de trabalho; a escassez de espaços e equipamentos adequados para desempenhar o trabalho docente; e a sobrecarga, subdimensionada pela Universidade, de tarefas que um Ensino Remoto acarreta.

Sobre esse último ponto, por mais que a regulamentação do Ensino Remoto Emergencial preveja um aumento para 200% da carga horária de atividades complementares, em nenhum momento foi revista a quantidade mínima de disciplinas a serem ministradas pelos docentes. Ou seja: na prática, continuamos a ter que ministrar o mesmo número de disciplinas e também a realizar todas as outras atividades de ensino, pesquisa, extensão e pós-graduação, previstas no nosso Estatuto.

Como vocês se sentem por terem recebido um prêmio por um trabalho que trata de um tema tão importante, mas ao mesmo tempo tão delicado, quanto às dificuldades enfrentadas pela educação pública no contexto da pandemia?

Essa premiação nos deixou muito satisfeitos por dois aspectos. Primeiramente, quanto ao reconhecimento do rigor científico e relevância de nossa pesquisa, realizada em condições muito pouco favoráveis. Em segundo lugar, por dar voz e visibilidade a um problema que não foi devidamente debatido, nem pelo Governo do Estado, nem sequer pela Universidade, que, a princípio não havia planejado qualquer ação de inclusão digital discente e nem de capacitação docente. Os dados de pesquisa que levantamos, cujo impacto e relevância foram reconhecidos internacionalmente pela comunidade científica, foram frequentemente ignorados, não divulgados ou mesmo alvo de questionamentos e, em alguns cenários, até mesmo alvo de críticas e controvérsias quanto ao seu rigor. Nós também “somos UESB”: apenas temos o direito de levantar dados mais rigorosos e de demandar debates mais aprofundados. Discordar com respeito não significa “ser contra a UESB”. Ao contrário, significa ter um profundo comprometimento e engajamento com a instituição que nos permite sermos professores e cientistas.