O Brasil possui cerca de 45 milhões de pessoas com deficiência, que enfrentam diariamente as dificuldades de viverem em uma sociedade notadamente capacitista. Há dificuldades no acesso ao emprego, serviços públicos, cultura, lazer, transporte público, dentre outras questões fundamentais para a vida. Neste Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, a Adusb entrevistou profissionais da educação, pesquisadores e militantes para contribuírem sobre o tema. A terceira entrevistada é Iara Silva dos Santos, mulher autista, graduada em Direito e História, atua como conciliadora no PROCON e é integrante da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo (ABRAÇA).
1. De quais formas e através de quais elementos estruturais e socioeconômicos, o capacitismo se expressa em nossa sociedade? Como podemos lutar pela inclusão e garantia de direitos às pessoas com deficiências?
O capacitismo está culturalmente entranhado em nossa sociedade. Nós o reproduzimos cotidianamente sem sequer nos darmos conta. A exclusão é algo sistemático e visa excluir tudo aquilo que é diverso. Em se tratando de deficiência, percebemos nitidamente a reprodução de conceitos oriundos de modelos de deficiência já ultrapassados, como o modelo caritativo de deficiência, onde a deficiência é vista como objeto de caridade, uma pessoa necessitada e sofrida que é dependente da ajuda das demais pessoas; ou o modelo médico de deficiência que, por sua vez, percebe a pessoa com deficiência como alguém portador de uma doença e que necessita ser curado, algo quebrado a espera de ser consertado.
O fato é que a forma como somos vistos hoje está diretamente relacionada a um papel histórico de passividade e a um lugar de “menos-pessoa” a que sempre fomos relegados. Sendo assim, podemos afirmar que o capacitismo é estrutural e está para a pessoa com deficiência, tal qual o machismo está para a mulher, a homofobia está para o LGBTQI+ ou o racismo está para o povo negro.
Falamos sempre em inclusão das pessoas com deficiência, discussão antiga no âmbito da educação. No entanto poucas são as iniciativas que a promovem de fato. Acredito que para que a inclusão ocorra de fato, temos que refletir sobre as razões pelas quais excluímos, porque não precisaríamos de inclusão se não excluíssemos. É muito comum que profissionais digam “não fomos preparados em nossa formação a lidar com pessoas com deficiência”, e a pergunta que faço é: alguma família teve formação para lidar com as diferenças de seus filhos?
Por vezes, incluir é apenas um trabalho de percepção do outro, observar, dialogar e entender quais são suas demandas e buscar alternativas, ferramentas e adaptações que lhe permitam o exercício da autonomia e consequentemente da igualdade. Claro que não é só isso, mas esse isso está ao nosso alcance e se aplica não só na educação, mas no mercado de trabalho, na produção e difusão de atividades culturais, no mercado de consumo e em todos os campos da sociedade.
Temos uma legislação que visa a garantia dos direitos das PCDs, mas na prática, pouca coisa é efetivada e para a eficácia desses direitos é necessária a criação de políticas públicas que atendam efetivamente a esse público. Políticas que sejam amplamente discutidas diretamente com as PCDs. Aliado a isso, percebo que se faz necessário uma mudança na forma como a deficiência é vista e aceita. Temos datas fixadas para a conscientização sobre cada tipo de deficiência, no entanto, precisaríamos mesmo é que para além da conscientização, tivéssemos aceitação de nossa condição, de nossa diversidade.
2. As práticas opressoras que envolvem o capacitismo seguem o discurso de que pessoas com deficiência precisam se encaixar à corponormatividade, aos princípios da “capacidade funcional” e da “eficiência”. Como as políticas neoliberais se apropriam deste discurso para manter o modelo socioeconômico vigente?
Penso que esse padrão de normalidade que a sociedade elege vem sofrendo transformações constantes e cada vez mais tem chegado a uma imagem inalcançável, no entanto, ao mesmo tempo que isso acontece, temos uma crescente manifestação de grupos de pessoas que contestam a imposição de um padrão de normatividade. Nunca foi tão evidente o quanto essa opressão em busca de uma pretensa normalidade pode ser danosa tanto psicologicamente quanto fisicamente. Nunca foi tão discutido.
É inegável que todo esse processo em estabelecer um padrão de corpo, de comportamento, de cérebro, foi estabelecido em função do capital. Com as políticas neoliberais, esses padrões se tornaram cada vez mais excludentes, relegando às pessoas que divergem deles à condição de incapazes e improdutivos.
É engraçado que se pegarmos a forma de classificação antiga do autismo, veremos que existe uma definição em que essa quantificação de produtividade que uma pessoa possa ter ou não aparece de forma bem evidenciada: “autismo de alto funcionamento”, quer dizer, a pessoa é autista, mais não chega a ser inútil, ainda funciona para alguma coisa. Percebe o quanto é estranho se falar em funcionamento de uma pessoa? A quantificação da capacidade funcional nesse caso funciona quase como analisar uma máquina e determinar: essa funciona, essa outra tem baixo funcionamento, não use! (ironia)
Felizmente esse discurso normalizador vem sendo cada vez mais contestado, quem sabe um dia não precisemos nos mutilar para cabermos numa caixinha padrão que não foi feita para nossos corpos, só para que não sejamos excluídos dos grupos sociais?
3. No âmbito educacional verifica-se o quanto as pessoas com deficiência são excluídas do processo de formação. Em tempos de ensino remoto esta exclusão é ainda mais aprofundada. Qual a sua avaliação sobre este momento e o impacto sobre as pessoas com deficiência?
A inclusão nas escolas ainda passa longe de se efetivar independente das mudanças ocorridas com a pandemia. Hoje legalmente temos a garantia da inclusão, mas o que podemos perceber é que ainda nos encontramos num processo de integração. Você integra, coloca a pessoa com deficiência no ensino regular sem que ela de fato seja incluída nas atividades de sua turma. Ela fica lá, sem que suas potencialidades sejam exploradas, sem interação. São inúmeros os relatos de mães de autistas em que seus filhos não foram incluídos nas atividades da turma, pois esta não poderia se adaptar às necessidades de uma só pessoa ou simplesmente por presumirem a sua incapacidade.
Também é comum o relato de profissionais dizendo “não fui preparado para lidar com crianças atípicas na minha formação”, mas afinal, quem é preparado para lidar com a diversidade de fato? Essa pergunta poderia ser um divisor de águas, visto que, se entendo que não sei lidar com o outro, também lembro que posso observar, perguntar à própria pessoa e seus familiares, criar estratégias, experimentar, entre outras ações possíveis para que a pessoa possa ser inserida no contexto escolar em igualdade com os demais colegas, explorando suas potencialidades. Diante da atual situação, surge o ensino remoto e com ele novos desafios em se tratando da inclusão dos alunos PCDs. O cenário é desanimador se pensarmos que a inclusão já enfrenta dificuldades no ensino tradicional de aulas presenciais, imagina agora numa nova modalidade de ensino?
Percebo que para alguns PCDs, como uma parcela de autistas podem assimilar e se desenvolver bem mais com o ensino remoto, visto que a socialização por meio virtual tem se mostrado uma excelente ferramenta para promover uma melhor interação social para autistas, no entanto, supre as necessidades de uma pequena parcela, outros tantos PCDs encontram-se totalmente desassistidos em suas necessidades de adaptação.
4. Diante da experiência da ABRAÇA, como você avalia as políticas públicas de atendimento e inclusão das pessoas autistas, e do que determina a Lei Brasileira de Inclusão, na cidade de Vitória da Conquista? Como a ABRAÇA tem atuado nessa perspectiva?
O que tenho percebido é que as políticas existentes não abarcam toda as necessidades da comunidade autista. Existe uma demanda muito grande por diagnósticos precoces, no entanto, o que vemos como regra é um diagnóstico tardio. Ainda hoje existem autistas vivendo em situação de cárcere privado, sofrendo maus tratos, sendo expostos a tratamentos degradantes e sem nenhuma comprovação cientifica, tendo seus direitos sexuais e reprodutivos violados, entre uma série de questões que precisam ser pauta de discussão quando se fala em política pública para os autistas tanto quanto o acesso a tratamento multidisciplinar, desinstitucionalização e inclusão. Além disso, há ainda a falta de participação direta de autistas na criação, proposição e implantação dessas políticas.
Em se tratando de Vitória da Conquista, é evidente o descaso com que o autista tem que lidar caso necessite de atendimento pelo SUS. Infelizmente existe uma escassez de profissionais muito grande, isso sem contar na falta de atualização destes profissionais sobre autismo, o que agrava ainda mais a saga em busca do diagnóstico. Políticas públicas voltadas para autistas adultos são inexistentes no município, é como se deixassem de existir ou de demandar tratamento ao atingirem a idade adulta. Contudo, ainda que de maneira precária, as escolas municipais e algumas particulares se preocupam em promover o mínimo estabelecido em lei para que haja a inclusão do autista na sala de aula. Contudo, sabemos que na grande maioria das vezes ela não se dá como esperado.
A Abraça hoje é composta majoritariamente por autistas, tendo como presidente a Fernanda Santana, também autista, mas essa não é a realidade da maioria das associações em prol do autismo que costumam ter em sua direção profissionais, mães e pais de autistas, o que é um problema uma vez que são terceiros falando, não há protagonismo.
A Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas com Autismo (ABRAÇA) é uma organização nacional que atua desde 2008 na defesa e promoção dos direitos das pessoas autistas, sempre visando a participação e o protagonismo autista por meio de manifestos públicos, campanhas anuais e publicação de conteúdo visando a conscientização sobre direitos humanos e autismo, com debates que incluem temas como a inclusão escolar pós-pandemia, o autista no mercado de trabalho, racismo e autismo, autismo em mulheres e outras pautas, sempre se baseando na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.