Cientistas ainda estão pesquisando as características da cepa Ômicron e suas eventuais consequências, mas um fato já está comprovado: como se alertou, enquanto houver uma desigualdade no acesso às vacinas e medicamentos contra a Covid-19, o mundo seguirá suscetível ao surgimento de novas variantes e, portanto, longe do fim da pandemia.
Apesar dos estudos sobre a Ômicron ainda estarem em andamento, a OMS emitiu um comunicado aos governos classificando a nova cepa “como um risco elevado ao planeta”. Isso porque ela apresenta um alto número de mutações que podem potencializar a transmissão e o risco de “fuga imunológica”, ou seja, escapar dos efeitos das vacinas criadas até agora.
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O surgimento da nova cepa acontece no momento em que a vacinação mostrou sua eficácia, reduzindo índices de óbitos, hospitalizações e contaminações em vários países. Contudo, um cenário marcado por uma brutal desigualdade vacinal.
Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), 80% das vacinas distribuídas no mundo foram concentradas em apenas 20 países, enquanto as 46 economias mais pobres receberam apenas 0,6% do total fabricado. Na África do Sul, país que identificou a variante, menos de 7% da população foi vacinada.
Além de negar a milhões de seres humanos uma das principais formas de proteção contra a Covid-19, essa situação é um celeiro de novas cepas, como alertavam diversos cientistas.
Quebra de patentes é urgente
A OMS e organizações humanitárias defendem que a quebra de patentes de vacinas e outras ferramentas médicas contra a Covid-19 é urgente para controlar a pandemia. O tema está em debate na OMC (Organização Mundial de Saúde) desde o ano passado, mas não avança por falta de acordo de países ricos e até mesmo do Brasil.
A patente é o registro de uma invenção – que pode ser uma nova tecnologia, um novo remédio, processo ou produto -, que garante o direito de propriedade intelectual, uso e exploração comercial exclusiva por 20 anos. A quebra de patentes permitiria o aumento da produção de vacinas, testes, medicamentos e tecnologias de combate à Covid-19 e reduziria preços, ampliando o acesso por todos os países.
“O recente surgimento de outra nova cepa mais transmissível é um exemplo revelador de como este vírus continua a sofrer mutação, especialmente na ausência de acesso equitativo às ferramentas médicas certas para lidar com a Covid-19”, disse Candice Sehoma, especialista em assuntos humanitários da Campanha de Acesso a MSF na África do Sul. “Com milhões de vidas em jogo, o mundo não pode se dar ao luxo de perder mais tempo. (…) Agora, a renúncia é mais necessária do que nunca”, disse.
Os riscos que a Ômicron traz reforça ainda mais essa necessidade, pois especialistas estimam que possa ter início um novo período de corrida por vacinas em todo o mundo.
Índia e África do Sul apresentaram ainda no ano passado a proposta de quebra de patentes e conseguiram o apoio de mais de 100 países. Entretanto, alguns governos têm travado o avanço das discussões, por defenderem os interesses de suas grandes indústrias farmacêuticas. É o caso da União Europeia, Reino Unido, Japão, Austrália, Canadá, Noruega e Suíça.
Os EUA também se negavam a discutir o tema, mas em maio deste ano, Joe Biden mudou de posição publicamente e passou a defender a demanda, apesar de não apresentar sua proposta concreta.
O veto de Bolsonaro à quebra das patentes
O pior é que o Brasil, contrariando política adotada em governos anteriores, também tem se colocado contra a quebra de patentes.
Capacho de interesses imperialistas, Bolsonaro vetou parcialmente o projeto de lei 14.200, que foi aprovado em agosto pelo Congresso e determinou a quebra temporária de patentes no país.
Os vetos de Bolsonaro, na prática, tornaram a lei inócua, pois definiu que a medida não seria imediata e apenas em casos em que a proprietária da patente “se recusar ou não conseguir atender à necessidade local”.
Especialistas alertam ainda que a quebra de patentes não pode ser apenas formal. O médico sanitarista, professor da USP e um dos fundadores da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) Gonzalo Vecina Neto, em artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo, ressaltou que o processo de produção de uma patente sempre tem segredos que não estão depositados.
Segundo ele, somente com esforços importantes de engenharia reversa é possível deslindar o processo para obtenção do produto. “Assim, a quebra de patentes sem a colaboração do detentor da patente é um ato heroico e vazio”, afirmou.
Ganância imperialista
Enquanto mais de 5 milhões de pessoas já morreram com Covid-19 em todo o mundo e a desigualdade se agrava, os lucros da chamada Big Farma, a seleta indústria farmacêutica altamente monopolizada, são recordes e não param de aumentar, seja com a valorização de suas ações e ganhos com contratos e vendas.
Para o dirigente da Secretaria Executiva Nacional da CSP-Conlutas Atnágoras Lopes, o fato é que a pandemia desnudou como poucas vezes na história a face cruel e a barbárie do sistema capitalista, onde o lucro vale mais que a vida.
“É por isso que vimos os países mais ricos comprarem mais doses que as necessárias para toda a sua população, enquanto a maior parte do mundo não tem imunizantes. É por isso que se negam a quebrar as patentes e permitir que a tecnologia seja usada para salvar vidas em todo o mundo, apesar de muitos dos projetos e pesquisas serem bancados com recursos públicos. É por isso que a grandes indústrias do setor fazem segredo do preço de custo e chegam a cobrar milhares de dólares por um único medicamento”, disse.
“A luta pela quebra das patentes, inclusive aqui no Brasil, denunciando a posição do governo de Bolsonaro, se coloca necessária e urgente. Mas, além disso, precisamos discutir com os trabalhadores da necessidade de também lutar pelo fim do capitalismo e construção de uma nova sociedade socialista, em que o lucro não valha mais que a vida”, afirmou Atnágoras.
A CSP-Conlutas, em reunião de sua Coordenação Nacional, já aprovou a defesa da quebra de patentes (confira aqui resolução política).
CSP-Conlutas com informações Médico Sem Fronteiras e o Estado de S.Paulo