Especial coronavírus: Entrevista com a professora Iracema Lima (Departamento de História)

A utilização da Educação à Distância (EAD) no contexto da pandemia é um assunto que divide opiniões, especialmente no interior das instituições de ensino. A convidada da semana do especial da Adusb sobre coronavírus, é a professora Iracema Lima, do Departamento de História da UESB para discutir EAD. A docente faz parte do Programa de Pós-Graduação em Educação e coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas para a Educação Superior.

A educação à distância (EAD) é um assunto controverso. Há os defensores desta modalidade de ensino sem restrições, como cursos integralmente realizados sem atividades presenciais e em qualquer circunstância. Outros acreditam que a EAD pode ser utilizada como forma complementar, mas não substituem o ensino presencial. Existem ainda os que pensam na EAD como uma modalidade de ensino completamente danosa, pois prejudica o processo de aprendizagem. O que você pensa sobre o assunto?

O momento que atravessamos mundialmente impõe uma nova perspectiva de sociabilidade e no campo educacional, coloca em destaque a discussão acerca da pertinência ou não da EAD, onde a ênfase é dada ao ensino em detrimento da discussão acerca das condições de aprendizagem. Entendo que esta modalidade de educação exige uma arquitetura institucional que perpassa tanto a construção de uma concepção curricular específica, quanto à real possibilidade de acesso ao ambiente virtual dos sujeitos envolvidos no processo. Atendidos os requisitos pedagógicos (ensino e aprendizagem) e estruturais (acesso de todos os sujeitos, equipamentos, rede) precisamos avaliar em quais situações esta se justificaria. Assim, comungo com os que defendem que a EAD, deva ser utilizada como forma complementar à formação, não substituindo o ensino presencial. Neste sentido defendo que a EAD ocorra em situações em que a educação presencial esteja estritamente impedida de acontecer, contrária, portanto, a perspectiva massificada e mercantil como vem acontecendo no Mundo. Importante não confundirmos a modalidade de EAD com a possibilidade de utilizarmos tecnologias remotas, em sintonia com as propostas pedagógicas formuladas para a educação presencial.

O Ministério da Educação autorizou a substituição das aulas presenciais pela modalidade à distância nas universidades federais por 30 dias, sendo possível prorrogação durante a pandemia do coronavírus. O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições do Ensino Superior (Andes-SN) está apreensivo sobre a decisão, pois há um histórico do governo de tentativas de imposição da EAD no ensino superior público brasileiro. É viável a substituição das aulas presenciais no ensino superior? Você considera que é possível que o governo Bolsonaro proponha a continuidade da EAD neste molde nas universidades pós-pandemia?

Convenientemente o Ministério da Educação utiliza a pandemia para colocar em curso seu projeto de utilização massiva da EAD na educação brasileira. Tal determinação ignora a velocidade imposta para o confinamento da população, desconsiderando que a pandemia não oportunizou qualquer planejamento para desenvolver as atividades de ensino da forma sugerida. Propostas desta natureza mascaram uma normalidade inexistente ao desconsideram o mundo real em que a grande maioria dos estudantes não dispõem das condições materiais necessárias para o acompanhamento e participação remota das atividades curriculares. Cursos planejados para serem realizados presencialmente não podem, por decreto, passarem a funcionar à distância, a toque de caixa. Este governo, que ataca um dos maiores patrimônios da sociedade brasileira ao contingenciar recursos para a permanência estudantil, ao impor cortes de bolsas para a pós-graduação, ao cortar investimentos para realização de pesquisas, ao precarizar as condições de trabalho dos servidores (docentes e técnicos), precisa reconhecer que nas universidades públicas brasileiras fazemos formação superior com a associação do ensino, da pesquisa e da extensão, não somos escolão, somos universidades e não delivery school!

Em 2018, pela primeira vez o número de vagas oferecidas para a educação superior à distância superou as presenciais. A que você atribui essa situação?

Para além de revelar o crescimento no número de vagas na EAD precisamos acompanhar quais setores têm investido nesta modalidade e quais fins os mesmos projetam. Precisamos problematizar por exemplo: Por que há mais vagas na modalidade de educação à distância do que na presencial? Qual a relação entre o ingresso e a diplomação? Quais cursos são ofertados nesta modalidade? Qual público têm majoritariamente se matriculado nesta modalidade? Como estão estabelecidas as relações de trabalho com os profissionais que atuam neste campo? Quais grupos financeiros têm atuado nesta área? Possivelmente as respostas obtidas revelarão o descompromisso dos governos brasileiros em investir na formação superior de qualidade para a sociedade brasileira. Precisamos compreender que não será a massificação mercantil que qualificará a educação superior neste país. Não será a elite que acessará a EAD; esta será reservada aos trabalhadores e trabalhadoras historicamente excluídos do sistema. A ampliação das vagas na EAD é um demonstrativo do que se reserva à classe trabalhadora: educação mercantil, de qualidade duvidosa, excludente e dependente.

Para esse aumento significativo nas ofertas de vagas EAD, contribui quase que exclusivamente a iniciativa privada. A oferta de vagas EAD em universidades públicas praticamente não varia. Na sua avaliação, a que se deve o alto interesse da iniciativa privada em cursos EAD, mesmo com todas as exigências tecnológicas envolvidas na produção dos materiais didáticos?

Aqui estão postas duas questões. Primeiramente as universidades públicas brasileiras precisam institucionalizar suas ações na EAD caso a realizem; ao mesmo tempo extirpar práticas dicotômicas ao definir as políticas de formação para o ensino presencial e a distância, não esquecendo que o nosso objetivo não é concorrer com a iniciativa privada na ampliação da oferta, mas sim qualificar nossa oferta. Quanto ao interesse da iniciativa privada que atua na área educacional este é um movimento mundial vinculado as orientações que Organismos Internacionais, a exemplo do Banco Mundial, da Organização Mundial para o Comércio, e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, têm formulado para o funcionamento da educação superior nos ditos países periféricos. Para estes a educação não se constitui um bem comum, e sim um serviço que precisa ser vendido, e preferencialmente em larga escala, ampliando ao máximo sua margem de acumulação de riqueza. Os investimentos em produção de materiais pedagógicos para o funcionamento da EAD são ínfimos diante do lucro que estes conglomerados têm acumulado com a massificação mercantil da educação superior em curso no Brasil.  

Nos últimos anos houve também um crescimento da EAD dentro das universidades públicas, ainda que pequeno. Como se deu esse processo? Qual a sua avaliação?

Infelizmente temos observado é que a ampliação de vagas na EAD nas universidades públicas muitas vezes é realizada à margem da definição das políticas institucionais, e majoritariamente nas formações que demandam menor investimento de recursos humanos e físicos a exemplo das Licenciaturas, e nunca nos cursos de Medicina, Direito, Engenharias, etc, reiterando a perspectiva da eficiência e da eficácia que orientam o modelo gerencialista de gestão pública. Muitos cursos vêm sendo aprovados ad referedum dos Conselhos Superiores, sem qualquer consulta à comunidade acadêmica destas instituições, oportunizando a chancela institucional de cursos que possuem, quando possuem, uma pequena minoria de docentes pertencentes ao quadro da IES atuando na formação dos discentes matriculados, reproduzindo inclusive relações trabalhistas extenuantes aos profissionais contratados para atuar neste segmento. Infelizmente, a exemplo da rede privada que oferta cursos nesta modalidade, atuamos também nas áreas que já ofertamos na modalidade presencial para público inclusive que poderia estar nos bancos das nossas universidades, sublimando ou mesmo invisibilizando a omissão do Estado em assegurar educação superior de qualidade a população brasileira.

Quais os principais desafios para a educação neste contexto de pandemia?

Pensar alternativas de intervenção pedagógica que possibilitem a formação de sujeitos críticos preparados para refletirem acerca dos desafios postos para a humanidade numa perspectiva classista de inclusão social, e não a partir dos interesses e prioridades excludentes impostos pelo capital. Denunciar que a ausência de um sistema de saúde público de qualidade para a população brasileira imporá, aos mais vulneráveis, um luto exponencial; torna-se premente expor que a fragilidade sanitária a que a grande maioria da classe trabalhadora está sujeita é resultado do descompromisso dos governos com a população, que escolhas políticas que priorizaram o sucateamento e privatização de serviços públicos impuseram a milhões de brasileiros condições sub-humanas, insalubres e muitas vezes cruéis de sobrevivência. Destacar que os ataques infelizmente são contínuos, não somente do governo Bolsonaro, mas também de governos que entendem que o investimento na formação superior representa despesa, que desconsidera que são as universidades públicas brasileiras que estão à frente na formação dos profissionais que atuam para mitigar os efeitos desta pandemia, que saem do interior dos nossos laboratórios e grupos de pesquisa das nossas salas de aula tanto da graduação quanto da pós-graduação respostas às questões postas na ordem do dia. É preciso denunciar a falsa normalidade que o Governo tenta passar ao buscar isenção política no caos social que nos impôs quando intensificou os ataques aos serviços públicos, a exemplo da saúde e educação pública, quando aprovaram a Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, a PEC da Morte para a população pobre deste país. Governos precisam ser responsabilizados, não somente pela omissão, mas também pelo projeto político que favorece a elite financeira, quando sobrepõe a responsabilidade fiscal, à responsabilidade social.