Especial coronavírus: Entrevista com a professora Cleide Lima (Departamento de História)

A expansão do coronavírus (Sars-COV-2) pelo mundo é sem dúvidas um dos maiores eventos da contemporaneidade. No entanto, o mundo não vive uma pandemia pela primeira vez. Para tratar da trajetória das pandemias na história, semelhanças e particularidades com o cenário atual, o especial da Adusb sobre coronavírus traz a professora Cleide Lima, do Departamento de História da UESB. A docente faz parte do Programa de Pós-Graduação em Cultura, Educação e Linguagens da UESB e do grupo de pesquisa do CNPq da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz “História da Assistência à Saúde”.

Vivemos atualmente a pandemia do coronavírus, mas o mundo já enfrentou diversas ao longo da história. Quais foram as mais relevantes e seus principais impactos?

Destacarei as epidemias de varíola, no século XVI, início do processo de conquista da América pelos espanhóis e a pandemia de cólera no século XIX.

A varíola era uma doença nova para os ameríndios, enquanto os conquistadores estavam praticamente imunes à doença. A alta taxa de mortalidade dessa epidemia teve impacto sobre a cultura nos nativos e complicou a defesa dos indígenas contra os ataques dos espanhóis. Só para se ter uma ideia do que se convencionou denominar de “colapso demográfico”, a estimativa era de que no início do século XVI haviam 25 milhões de indígenas no atual México. Cem anos depois, esse número caiu para apenas 1,6 milhão. Foi uma verdadeira catástrofe humana e impactou fortemente na dominação espanhola na América. Além da dominação econômica, a conquista se deu também através dos agentes patógenos.

O cólera morbus foi a grande doença do século XIX, tendo causado seis pandemias mundiais. Originária da Ásia, se expandiu de forma veloz, tal como os navios a vapor inventados no mesmo período, que aceleraram o deslocamento de mercadorias, pessoas e doenças, como foi o caso do cólera. Doença devastadora, pois matava muito rapidamente, através do bacilo colérico, que se alojava no intestino e causava desidratação profunda, com episódios de vômito e diarreias praticamente incontroláveis pela ciência médica do período. O grande impacto do cólera foi sobre a economia do período, que precisou se adequar a períodos de quarentena de navios e pessoas nos locais infectados. Os interesses econômicos, muitas vezes, se sobrepujavam aos interesses humanitários, o que agravava as epidemias, haja vista que muitos não cumpriam a quarentena como deveriam. Os embates entre os setores econômicos e os médicos eram frequentes. Essas disputas evidenciavam a dificuldade do conhecimento médico se impor na estruturação das políticas estabelecidas pelos Estados Nacionais daquele período.

A gripe espanhola foi outra grande pandemia, que atingiu a população mundial no final da Primeira Guerra Mundial (1918-1920), causando um número assustador de mortes, cerca de 50 milhões em todo o mundo. A partir de um conhecimento médico mais firmemente estabelecido, impôs medidas mais eficazes de controle, como isolamento, lavagem das mãos. Impactou também na economia, com a paralisação de fábricas e serviços, mobilizando diversos setores da sociedade para o seu controle.

Cada sociedade responde de formas diferentes aos eventos epidêmicos. E essas respostas determinam enormemente as consequências e os impactos.

Na sua avaliação, quais as semelhanças e as diferenças centrais entre o enfrentamento de uma pandemia no século XXI e em séculos passados?

As maiores semelhanças entre o passado e o presente são os interesses econômicos em jogo que, em muitos momentos, determinaram/am as ações coletivas de enfrentamento de uma epidemia. A quarentena causava – e ainda causa – forte impacto na economia e esses interesses sempre pressionaram governos e cientistas a “solucionar” as crises sanitárias de modo que não cause prejuízos à economia, mesmo que isso implique o comprometimento da saúde e da vida da maioria da população.

Outra semelhança é o que a psicologia chama de “comportamento coletivo”. O historiador Jean Delumeau chama a atenção que determinados comportamentos coletivos são comuns em períodos de epidemia, como o medo do fim da morte personalizada, ou seja, a interrupção de rituais cotidianos da vida da população, como poder enterrar seus entes queridos de maneira digna – com forte apelo religioso. Os enterramentos coletivos, despersonalizados causavam e causam grande dor e pânico na população, porque alteram as relações humanas de maneira profunda em um curto espaço de tempo.

A principal diferença para as grandes epidemias do passado (do século XIX para trás) é que a ciência médica avançou muito. Até meados do século XIX, não se sabia a causa, forma de transmissão e muito menos a cura para a maioria das doenças. Com a descoberta do micróbio (Pasteur e Koch foram fundamentais nesse processo), na segunda metade do século XIX, a medicina começa a cumprir a promessa de cura e sobrevivência para a humanidade. Da velha visão de higiene, determinada por hábitos urbanos, pela ação miasmática do ambiente e até mesmo pela vontade divina, passou-se – a partir do final do século XIX e todo o século XX – à teoria da saúde pública sustentada por uma nova epidemiologia. A nova saúde pública teve como propósito erradicar as doenças por meio da eliminação dos microorganismos. No passado, algumas medidas contribuíam no controle das enfermidades, ainda que os próprios médicos não soubessem comprovar cientificamente a eficácia de determinadas ações profiláticas. Atualmente não, ninguém deveria questionar a produção científica, que prova e comprova quais são as melhores atitudes individuais e coletivas no enfretamento das pandemias.

O isolamento social é uma das grandes polêmicas do momento. Apesar da comprovação científica de que é um método para o combate ao coronavírus, políticos e empresários defendem o retorno das atividades normais para combater os prejuízos à economia. Existiram outros momentos em que o isolamento social foi necessário ou realizado para combater uma pandemia? Quais as controvérsias da época sobre o assunto?

Sim, ainda que não de maneira generalizada ou horizontal como está sendo feito – acertadamente – hoje.

A quarentena foi uma prática muito felicitada e, ao mesmo tempo, a mais odiada entre comerciantes e políticos. Nascida na Idade Média, junto as grandes epidemias de peste, resultou da necessidade das populações em se protegerem do flagelo. Como afirma o historiador George Rosen, usava-se o método de isolar e observar pessoas e objetos por um período específico e sob condições rigorosas – até se estabelecer que não estivessem com a peste. Assim nasceu a quarentena, contribuição fundamental à prática da saúde pública.

A maior controvérsia em torno das práticas de isolamento/quarentena era o tempo de duração do isolamento. Os governos eram pressionados pelos interesses econômicos para encurtar o prazo de isolamento e reabrir o comércio e as atividades produtivas, porque as quarentenas eram um verdadeiro entrave ao comércio e, em parte, até o século XIX, os órgãos sanitários buscavam resolver os assuntos econômicos em primeiro plano.

Lavar as mãos com frequência é um dos principais cuidados para combater a infecção pelo coronavírus. A população periférica brasileira enfrenta enormes dificuldades para realizar um cuidado básico como este, já que há problemas no fornecimento de água. Condições precárias de higiene causaram adoecimento em outros momentos da história. É possível estabelecer relações entre as dificuldades enfrentadas pela população periférica de hoje e de momentos passados em momentos de pandemia?

Certamente! Apesar de afirmamos que o vírus e/ou epidemias são democráticas, pois podem atingir a todos e todas, mas elas sempre mataram/matam os mais vulneráveis economicamente, os miseráveis, pois estão mais expostos, são os menos alimentados, os que possuem piores condições de higiene e moradia.  

E não nos enganemos, a partir do século XIX, as medidas adotadas pelos ricos e pelas elites não surgem a partir de uma concepção ética e moral com os mais pobres. Compartilho aqui uma importante análise feita pelo sociólogo Gilberto Hochman, mas, principalmente, “da percepção de que a ameaça da doença os tornara solidários e reorganizava a sociedade, certamente, a contragosto, para muitos. Definitivamente, as elites percebiam que tinham perdido a sua imunidade social, diante de um problema do qual dificilmente alguém poderia se eximir. Nesse sentido, a consciência social das elites corresponderia à percepção de que não estavam mais isentas dos efeitos negativos produzidos pelos membros menos afortunados da sociedade”.

E os ditos “benefícios” que a população periférica pode vir a receber com essa pandemia são fruto dessa percepção, de que as epidemias são um mal público e que, para proteger os ricos, é obrigatório incorporar os mais pobres, ainda que de maneira momentânea e oportunista.

Porque na hora de escolher quem vai sobreviver e ter acesso ao sistema médico-hospitalar, as elites políticas e econômicas brasileiras não abrirão exceção.

Como você pode caracterizar a postura política do Brasil em relação ao enfrentamento das pandemias? Há alguma recorrente que permanece até os dias de hoje?

O Brasil, do ponto de vista dos arranjos políticos regionais, teve, a partir do século XIX com o processo de independência, certo domínio político e econômico na região, pela grandeza do país e pela forte economia. Com o desenvolvimento da ciência médica, o país foi se transformando também – ao longo do século XX – em grande produtor de conhecimento, a partir da estruturação das universidades e institutos de pesquisa públicos, que não deixam nada a dever a outros países ricos do planeta. Então, as posturas políticas do Brasil acabam influenciando e servindo de parâmetros para outros países, especialmente na América do Sul e também em alguns países africanos. Qualquer decisão política brasileira acarreta consequências importantes internas e externamente.  

Passar por pandemias trouxe saldos para a população brasileira, como o entendimento da importância do saneamento básico e das vacinas. O que você considera que o enfrentamento ao coronavírus pode trazer como saldo político para brasileiras e brasileiros?

O maior saldo político que devemos colher é a consciência da importância do Estado e das políticas públicas coletivas, que possam abarcar toda a população e garantir as condições dignas de vida para toda a população brasileira. Sem ações coletivas coordenadas e planejadas a médio e longo prazo, estaremos fadados a outras catástrofes humanas como a que estamos vivendo. Só o Estado é capaz disso, pois pode e deve investir em saúde e educação sem estar preocupado com o lucro e com a mercantilização da vida, mas tão e somente com a sobrevivência das pessoas. Li recentemente a frase de Gonzalo Vecina Neto (ex-presidente da Anvisa), que é um sanitarista muito respeitado que é: sem o SUS, é o caos. E isso é preciso defender e fortalecer, o sistema público e universal de saúde, afinal quanto vale uma vida? A vida humana é preciosa demais e todos e todas merecemos viver, e viver plenamente!