Ditadura Civil-Militar: uma página virada por quem?
Foto: Evandro Teixeira

Um romance mal resolvido. É o que se lê nas entrelinhas do Editorial de 12 de dezembro do jornal Folha de S. Paulo: a relação colaborativa e de concordância que o jornal mantinha com o governo no período dos anos de chumbo, a partir do golpe de 1964. Com o título “Página Virada”, a Folha de S. Paulo questiona o fato de, ao se construir a Comissão Nacional da Verdade, em 2012, não ter se levado em consideração tratar, nas investigações, “das violações de direitos humanos por motivação política que não tenham sido causadas pelo Estado”. Defende, ainda, a manutenção da anistia irrestrita e a prescrição da tortura como crime, contrariando, dessa maneira, convenções internacionais assinadas pelo Brasil sobre os chamados crimes contra a humanidade.

 As questões pontuadas no editorial foram publicadas no jornal de circulação nacional dois dias após a entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade, com investigações que compreendem o período de 1946 a 1988, sobretudo entre 1964 e 1985.
 
Como se não bastasse considerar os que resistiram contra o regime militar como criminosos, e ter esta mancha na história, período em que foi permitido que militantes fossem investigados, julgados e punidos sem qualquer base legal e com recursos refinados para tortura física e violência psicológica máxima, ainda considera o caso como uma página a ser virada.
 
Nas redes sociais, filhos de torturados, militantes daquele período e jovens de hoje rebateram a Folha, destacando casos marcados pelo agressivo regime militar, a dor de quem sofreu nas mãos do Estado simplesmente por ter resistido a um regime de exceção ilegítimo, e o quanto é necessário valorizar o direito à memória e lutar por justiça e a devida punição em tempos ditos democráticos.
 
Embora ainda seja chocante se deparar com posições que tentam amenizar a culpa dos agentes de Estado e colaboradores civis envolvidos nos crimes da ditadura, que tentam relativizar e reivindicar parte dos horrores daqueles anos aos militantes que resistiam contra o golpe, em nada surpreende um editorial que contenha estes ingredientes. Sobretudo porque se trata de um veículo de informação cuja relação e colaboração com o governo ditatorial era estreita e alinhada.
 
De acordo com o relatório final publicado pela Comissão Nacional da Verdade, já em março de 1964 a Folha de S. Paulo emitia apoio explícito à intervenção militar, e cita parte de um editorial publicado logo após o Comício da Central do Brasil, realizado em 13 de março daquele ano – momento em que João Goulart anunciou iniciativas de reformas políticas, agrária e contra a privatização de instituições nacionais. “O Comício de ontem, se não foi um comício pré-ditadura, terá sido um comício de lançamento de um espúrio movimento de reeleição do próprio sr. João Goulart. Resta saber se as Forças Armadas, peça fundamental para qualquer mudança deste tipo, preferirão ficar com o sr. João Goulart, traindo a Constituição e a pátria, ou permanecer fiéis àquilo que devem defender, isto é, a Constituição, a pátria e as instituições. Por sua tradição, elas não haverão de permitir esta burla.”
 
Ficava, portanto, evidente a posição política do jornal, que teve também presença ativa no apoio à Oban (Operação Bandeirantes), “seja no apoio editorial explícito no noticiário do jornal Folha da Tarde, seja no uso de caminhonetes da Folha para o cerco e a captura de opositores do regime”, indica o relatório.
 
A Operação Bandeirantes, que posteriormente deu origem ao DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações-Coordenação de Defesa Interna), possibilitou mais repressão contra a classe trabalhadora, após criar este padrão de relacionamento entre empresariado e militares afinados ideologicamente, uma vez que os contornos do sistema capitalista na economia nacional condiziam com o regime à época imposto, e muito bem estruturado financeiramente.
 
A CSP-Conlutas fez parte do Grupo de Trabalho “Ditadura e Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical”. Para o membro da Secretaria Executiva Nacional da Central, Luiz Carlos Prates, o Mancha, essa página não pode ser virada. “Por vidas que se perderam, por marcas que o tempo não elimina, este período obscuro da história não pode ser tratado como “uma página a ser virada” como afirmou a FSP, que não quer trazer a público seu envolvimento com esta sangrenta ditadura, mas nós queremos e queremos apontar as empresas que tiveram envolvimento na repressão aos trabalhadores, obrigando-as judicialmente a reparar os que foram perseguidos”, reforça o dirigente.
 
A ditadura civil militar brasileira grita nas paredes pichadas com um “Ditadura Nunca Mais”, e na luta dos movimentos dos trabalhadores que ainda sofrem arbitrária repressão contra a sua organização e os movimentos periféricos de hoje em dia, engajados em combater o genocídio praticado pelo sistema político-jurídico-militar atual (que tem importantes raízes autoritárias e repressivas instituídas durante o regime) e que, talvez por força do esquecimento e da impunidade, ainda seja um traço forte e característico de nosso período dito democrático.
 
Por Sâmia Gabriela Teixeira

Fonte: CSP-Conlutas