Educação em risco: o fim da pluralidade de ideias, das políticas afirmativas e a perseguição aos professores

O mês de outubro tem sido marcado por ataques à educação brasileira. Universidades em todo país tiveram sua autonomia desrespeitada por operações com finalidade e legalidade questionadas. O Escola Sem Partido (PL 7180/14), que propõe a restrição da liberdade de ensino e a instalação de um processo de vigilância aos professores, voltou à pauta da Câmara dos Deputados. Além disso, partidários do presidente eleito têm divulgado projetos preocupantes, como o enaltecimento do ensino superior privado, crítica às cotas e revisão de currículos para prevenir a suposta “doutrinação ideológica”.

O Escola Sem Partido sem dúvidas é parte fundamental do projeto de educação defendido por setores conservadores e reacionários do Brasil. A desculpa da proposta é disciplinar o “equilíbrio que deve ser buscado entre a liberdade de ensinar e a liberdade de aprender”, diante do argumento do suposto aproveitamento de docentes da “audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias”.

Contudo, na verdade, apesar do nome “Sem Partido”, o real objetivo da proposta é impor em toda a Educação Pública a ideologia fundamentalista de seus proponentes, proibindo a pluralidade de ideias no campo das ciências humanas e sociais, e submetendo o ensino das ciências naturais aos dogmas religiosos de seus proponentes. O projeto pretende mudar parte da Lei de Diretrizes e Bases de forma a garantir que as crenças religiosas, morais, filosóficas e políticas da família tenha “precedência” sobre a educação escolar, bem como impedir que as escolas discutam sob qualquer perspectiva gênero e orientação sexual, chegando ao absurdo de proibir o uso da palavra “gênero” em livros didáticos e paradidáticos de qualquer disciplina, na educação básica e no ensino superior.

Mesmo com a suspensão da votação do PL 7180/14 na Comissão Especial da Câmara dos Deputados na quarta-feira (31), a previsão é de que retorne já na primeira semana de novembro, uma demonstração da urgência destes setores em aprova-lo. Caso passe pela Comissão, o PL seguirá direto ao Senado. O parecer do deputado Flavinho (PSC) propõe uma série de mudanças no texto original que abrangem o alcance e tornam ainda mais severos os efeitos do Escola Sem Partido. Agora, se aprovado, o projeto balizará também a construção de políticas e planos educacionais, conteúdos curriculares, projetos pedagógicos e todos os materiais didáticos. As instituições de ensino superior poderão ser afetadas, desde que respeitada a autonomia universitária, se é que há compatibilidade entre ambos.

Conheça o parecer do deputado na íntegra e a nova redação do projeto de lei.

Na carta aos parlamentares da Comissão Especial que analisará o PL 7180, o Andes-SN afirma que “diferentes órgãos da justiça já se manifestaram contrariamente a respeito do projeto, apontando sua inconstitucionalidade com base nos artigos 205 e 206 da Constituição Federal de 1988. Sendo assim, ele fere a ordem constitucional em vários pontos, tais como: confunde a educação escolar com aquela que é fornecida pelos pais, e, com isso, os espaços público e privado; impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; nega a liberdade de cátedra e a possibilidade ampla de aprendizagem; contraria o princípio da laicidade do Estado, porque permite a prevalência de visões morais/religiosas particulares no espaço público, que é o que é o âmbito da escola”’.

Leia a carta do Andes-SN.

Em consonância às ideias do Escola Sem Partido, o general Aléssio Ribeiro Souto, parte da equipe de educação do presidente eleito, afirmou que pretende fazer uma revisão completa de questões curriculares para impedir que se tenha na escola “orientação de um determinado partido ou corrente ideológica em dado momento”. Ao ser perguntado sobre o que fazer se um pai desejar que um professor ensine o criacionismo em vez da teoria da evolução das espécies, o general considerou que até onde “saiba não está errado”. Acrescentou ainda que “foram questões históricas que ocorreram. Se a pessoa acredita em Deus e tem o seu posicionamento, não cabe à escola querer alterar esse tipo de coisa, que é o que as escolas orientadas ideologicamente querem fazer, mudar a opinião que a criança traz de casa. Cabe citar o criacionismo, o darwinismo, mas não cabe querer tratar que criacionismo não existe”.

Fica nítido, portanto, o retrocesso ao desenvolvimento da ciência que significará a aprovação deste projeto de educação conservador e reacionário no Brasil. “O Escola sem Partido é completamente absurdo. No que se refere às Ciências Naturais, é fato histórico incontestável o atraso provocado pela tentativa da Igreja de impedir o avanço do conhecimento científico. Durante o período conhecido como Idade Média, cientistas das mais diversas áreas foram perseguidos, muitos queimados em fogueiras, por causa do obtuso fundamentalismo religioso da Igreja que queria a todo custo deter o avanço das Ciências. O Escola Sem Partido é a triste versão contemporânea da Inquisição. Numa tentativa desesperada de impor seu discurso intolerante e homofóbico, chegam ao absurdo de proibir o uso do termo “gênero” em toda a bibliografia didática e paradidática”, defendeu o presidente da Adusb, Sérgio Barroso.

A Frente Parlamentar Evangélica lançou na quarta-feira (24) um Manifesto à Nação com o objetivo de apresentar em seu documento programático quatro “eixos principiológicos”, sendo um deles uma suposta “revolução na educação”. A proposta pretende “valorizar e incentivar o mérito em todo o sistema educacional nacional como condição do sucesso individual”. O documento critica o desempenho brasileiro na ciência e inovação tecnológica, mas considera como altos os investimentos nas universidades públicas, hoje as principais responsáveis pela produção de ciência e tecnologia no país. Os planos da Frente englobam ainda uma ampliação da precarização do trabalho docente ao denunciar que “orientadores de Mestrado e Doutorado só podem orientar até 8 estudantes, o que explica o imenso atraso do Brasil, salas de aula vazias, e um custo gigantesco para um resultado microscópico”.

Na avaliação do presidente da Adusb, o documento é carregado de preconceitos. “Sugerem que as pessoas não estudam por não terem competência para tal (o tal mérito), quando na verdade todos sabemos das enormes barreiras colocadas para impedir que a maior parte da população tenha acesso uma educação de qualidade. Desconhecem completamente a realidade mundial do financiamento para pesquisa e desenvolvimento científicos, tecnológicos e de inovação. Não entendem que o principalmente problema no Brasil é justamente a falta de uma política pública consistente e estável de financiamento para estas atividades. Por fim, com a desculpa de cortar gastos, discutem uma série de medidas de minimização da participação do estado em setores estratégicos (como a educação), mas em momento algum falam em cortar as diversas mordomias do poder legislativo”, pontuou.

Mais ilegalidades

Outra ação polêmica de ataque à educação veio por meio da deputada eleita Ana Caroline Capagnolo (PSL). Mesmo sem aprovação do Escola Sem Partido, tem incentivado estudantes a denunciarem professores “doutrinadores”, a partir de gravações e filmagens, a serem enviados a um número de celular. O Ministério Público de Santa Catarina ingressou com uma ação contra a deputada pela criação de “um serviço ilegal de controle político-ideológico da atividade docente” e solicitou o bloqueio do contato de recebimento das denúncias. Ainda assim, Ana Caroline – que já deu aula com camisa do presidente eleito – manteve a campanha de repúdio ao que considera como abuso, agora com direcionamento à Promotoria de Justiça das cidades e o Conselho Nacional do Ministério Público.

Na quarta-feira (31), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela suspensão das ações realizadas pela polícia e justiça nas Universidades. Por unanimidade, os ministros entenderam que as ações violaram a liberdade de expressão. Nas palavras da ministra Carmem Lúcia, relatora da ação, “não há direito democrático sem respeito às liberdades [...] A única força legitimada a invadir uma universidade é a das ideias, livres e plurais. Qualquer outra que ali ingresse sem causa jurídica válida é tirana, e tirania é o exato contrário da democracia”. Na semana passada, foram diversos os ataques à liberdade da expressão em universidades. Diversas instituições de ensino tiveram sua autonomia universitária desrespeitada com o cancelamento de aulas públicas, apreensão de materiais, invasão de salas de aulas, dentre outras medidas autoritárias e ilegais, conforme entendimento do STF.

Leia mais sobre a decisão do STF.

Resistir aos ataques

O Andes-SN e a Adusb defendem neste momento de ameaça às liberdades democráticas que a categoria docente se mobilize em torno da Frente Escola Sem Mordaça e fortaleça a participação nas atividades sindicais. “Agora precisamos fazer um trabalho cientifico sobre nossos próximos passos. São muitos ataques, e ataques coordenados, e precisamos atuar em várias frentes para garantir que a educação seja mantida como um bem público”, afirmou a 1ª Tesoureira do Andes-SN, Raquel Araújo, em matéria do sindicato nacional.

Fonte: Adusb com informações do Andes-SN, Agência Câmara, TV UOL e Folha de São Paulo.